Pequenos Contos – Trechos de Realidades Histórias de Ontem e de Hoje

Num momento de grande conturbação, contenção e expetativa, em que se enfrenta uma “guerra” contra um inimigo público comum, cientificamente nomeado COVID-19, há que cumprir a quarentena imposta e remetermo-nos à intimidade dos nossos lares para evitar a propagação por contágio deste destemido “Novo Coronavírus” que avança descontrolado à escala global. Só cumprindo estas regras, evitando ao máximo o contacto com as pessoas e seguindo à risca as regras de higienização das mãos e dos espaços, mantendo também as distâncias estipuladas poderemos conter esta pandemia que a todos assusta e tolhe. Contudo, não nos deixemos vencer pelo medo e pela angústia da incerteza, relativamente ao futuro, nem nos permitamos parar de sonhar. Como tal, trago-vos boas novas no que respeita a esta crónica de “Pequenos Contos”. O que quero dizer-vos é que compilei os textos publicados nesta rubrica e criei um livro que brevemente lançarei ao público, pois já se encontra no prelo da Chiado Editora. Os Contos (de ontem e de hoje) foram todos revistos e posso dizer-vos que está um bom trabalho. Muitos dos contos são inéditos. Tinha previsto o lançamento lá para finais de junho, inícios de julho, mas com o COVID-19 a rondar por aí, só avançaremos quando tudo acalmar. Deixo-vos aqui um dos textos (republicado) porque este é um momento propício ao recolhimento e à leitura e porque “ler faz falta”.
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A BOFETADA
Fechou os olhos e calou os pensamentos. Já não tinha paciência para discussões nem palavras suficientes para argumentar. Desta vez, estava mesmo decidida. Tentaria colocar um fim àquele quotidiano hostil e infernal que lhe consumia as forças e a jovialidade.
Ricardo pronunciara algumas frases por entre dentes, dando a entender a sua insatisfação. Todavia, não fora completamente percetível e Amélia, de cabeça baixa, preferiu o silêncio.
A vila parecia deserta àquela hora da madrugada. O homem olhou pela janela, uma e outra vez, e continuou com o seu interrogatório…
– Não dizes nada? – gritou, demonstrando fúria na voz – Quem cala consente!
– Não há nada a dizer. Estas conversas não têm por onde se lhe pegue. Bom seria se bebesses menos e gastasses as horas a trabalhar. Andar de bar em bar não é uma opção de vida e as tuas atitudes também não. Não vês que estás a destruir-nos?
– Eu é que estou a destruir-nos? Tu é que passas o dia fora de casa, sabe-se lá com quem e a fazer o quê, e eu é que estou a destruir-nos?
Amélia não aguentava mais. O seu casamento dava sinais de rotura a cada dia e ela não sabia o que fazer para o segurar. Estava cansada, desgastada. Passava oito horas do seu dia fechada nos escritórios de uma oficina de automóveis e, em pós laboral, ainda dava apoio a duas senhoras idosas para ganhar mais uns trocados, de modo a conseguir pagar as contas no fim do mês e equilibrar o orçamento familiar. O marido, enfermeiro de profissão, perdera o emprego alguns meses antes por ter sido negligente ao administrar um medicamento errado a uma paciente, ato que quase lhe tirara a vida. A mulher ficara em coma durante algum tempo, sobrevivendo por milagre.
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Fora uma tarde, por demais, intensa. Ao hospital, acorreram várias emergências, para além de uma situação de acidente, gravíssima, que exigiu um helicóptero do INEM. Ricardo não tivera mãos a medir.
Depois do expediente, e completamente exausto, dirigira-se a um bar onde bebera um pouco para além da conta. O rapaz já antes vivera situações dramáticas de alcoolismo, mas fazia tempo que se tinha recuperado e nada havia a apontar-lhe. Naquele fim de tarde, encontrou um amigo e beberam juntos. Na euforia, esquecera que tinha sido destacado para fazer plantão e varar a noite no hospital, o que acabou por fazer, mas completamente embriagado. O homem pagou caro pelo seu erro. Fora despedido do emprego e expulso da ordem dos enfermeiros. Amélia tentara ajudá-lo, carregando aos ombros uma cruz que devia ser partilhada por ambos. Desculpou-o vezes sem conta, sempre que chegava a casa e o encontrava alcoolizado, compreendendo a sua raiva e frustração. Incentivara o marido a tratar-se numa clínica de desintoxicação e disponibilizara-se, até, a acompanhá-lo às reuniões dos AA (Alcoólicos Anónimos), depois de descobrir na Internet uma instituição para esse fim e próximo da sua área de residência. Desejou que se recuperasse completamente e que voltasse a ser o homem doce, carinhoso e responsável com quem um dia decidira partilhar a vida até à eternidade.
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Mulher lutadora e de enorme coração, Amélia emanava doçura no olhar e um sorriso franco que cativava as pessoas, principalmente os idosos a quem dava especial atenção. Reconhecendo as suas fraquezas e os complexos de inferioridade que o acompanhavam no dia-a-dia, Ricardo sofria uma angústia permanente com medo que a esposa viesse a interessar-se por outro homem. O ciúme que sentia levavam-no a agir com alguma violência nos dias de maior embriaguez.
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Amélia saía do emprego sempre à mesma hora. Terminava o expediente pelas dezoito horas, dirigindo-se, depois, para casa das anciãs, a quem prestava apoio domiciliário, raramente ultrapassando as duas horas. Naquele dia, uma das senhoras sentiu-se mal. Na ausência dos familiares, Amélia chamara o INEM e acompanhara a idosa à urgência do hospital, ficando retida até que alguém da família se fizesse presente.
Passava das vinte e três horas quando abriu a porta de casa e penetrou no interior do aposento. No escuro, o marido esperava a sua chegada, acoitado nas sombras da noite, como fera que aguarda o melhor momento para desferir o golpe fatal sobre a presa.
Amélia apanhou um susto de morte quando o homem se levantou e saiu do escuro, dirigindo-se para ela com uma voz rouca e sumida, questionando-a sobre o porquê da demora. Cansada e faminta, pois que nada havia comido desde a hora do almoço, a mulher explicara-lhe, uma e outra vez, porque chegara tão tardiamente, mas Ricardo berrava com ela, destratando-a, acusando-a de traição e chamando-a de prostituta, como se fosse uma qualquer. Não suportando tamanha humilhação, virou-lhe as costas e dirigiu-se à cozinha para comer alguma coisa. Ele agarrou-a pelo braço e voltou-a para si, arrancando-lhe um beijo à força. Depois, derrubou-a sobre o sofá, numa tentativa de violação. Amélia conseguiu escapar-lhe e fechou-se na cozinha, soluçando.
– Vaca! Prostituta! És uma traidora! – vociferava o homem do outro lado da porta.
José acordara com os arrufos do pai. O pequeno saltou da cama e correu a chorar, chamando pela mãe…
– Mamã, mamã!
Ao ouvir os gritos da criança, Ricardo afastou-se para a sala e Amélia abriu a porta de rompante, apenas pensando no filhinho e nos traumas que aquela situação poderia vir a acarretar. Abraçou-o e tentou acalmá-lo…
– Já passou, meu amor! Já passou! – olhou o menino nos olhos e sorriu – Está tudo bem, meu doce! A mamã está aqui! Schiuuuu…
Amélia pegou no garoto ao colo e levou-o para o quarto. Deitou-o na cama, ficando ao seu lado até que voltasse a adormecer. Nesse entretanto, pensou seriamente na sua vida. Pouco depois, voltou à cozinha para comer algo. Uma coragem fora do normal abraçava-a, não permitindo que tivesse medo. A reação do filho e o receio de que aquela situação viesse a piorar, causando-lhe ainda mais dissabores, fizeram com que tomasse uma decisão.
Ricardo estava quieto, sentado no sofá da sala, calmo e pensativo. Amélia aproximou-se e olhou-o demoradamente. Na verdade, não precisava dele para nada. Fazia já muito tempo que era ela que o sustentava e lhe pagava os vícios. Não passava de um inútil a viver às suas custas. Nunca se interessara por visitá-la no trabalho ou de averiguar onde passava o resto das horas até chegar a casa. Nunca tentara ajudar ou simplesmente minimizar-lhe o cansaço ou dar-lhe alguma força nos dias de maior desânimo. Apenas sabia inquirir, julgar e condenar. No final, não passava de um farrapo de homem acomodado ao fracasso.
Ao dar pela presença da esposa, Ricardo continuou com as mesmas acusações, estúpidas e sem nexo. Amélia pediu-lhe que respeitasse o sono do filho e que falasse mais baixo, ao que ele aquiesceu, embora sempre com insinuações e inquirições…
– Vá, diz! Confessa d´uma vez por todas que tens um amante!
– Não há nada para dizer! Já te falei que esta conversa não nos leva a lado nenhum. Porque não arranjas um trabalho e preenches os dias a fazer algo útil na vida? Sou eu que te sustento. Ainda não percebeste?
– És uma vadia! Uma porca, uma…
Amélia chegara ao limite das forças e da paciência. Num momento de máxima saturação e impulsionada por uma força que desconhecia, enfrentou o marido e disse:
– Acabou! Não aguento mais isto. Quero o divórcio!
Do lusco-fusco, surgiu uma mão furiosa que assentou violentamente no rosto feminino, deixando-lhe a pele a latejar. O impacto da bofetada fez com que a mulher rodasse sobre si mesma e embatesse na mesa da sala de estar, derrubando os objetos de decoração que ali se encontravam. O barulho despertou a criança que apareceu no espaço sem que ambos dessem por isso. Como resposta ao ato violento do marido, Amélia ofereceu-lhe a outra face…
– Podes continuar, se isso te faz sentir um homem melhor e mais realizado. Força!
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Fora a primeira bofetada no sentido literal da palavra, mas a dor que sentia era na Alma e no coração. Ricardo ferira-a vezes sem conta com palavras duras e indecentes, mas sempre o desculpara usando como exemplo a máxima “Palavras leva-as o vento”. Todavia, desta vez o homem ousara ir mais longe e ela garantiu a si mesma que jamais permitiria que voltasse a acontecer.
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Imagem – Lugar da Fonte dos Peixes, Castro Daire
Reza a história que quem beber daquela água acaba por casar e ficar no concelho.
Este texto é um grito de liberdade para todas as pessoas que sofrem caladas o flagelo da violência doméstica.