11 de Maio, 2024
Castro DaireLocalOpinião

Pequenos Contos – Trechos de Realidades Histórias de Ontem e de Hoje

Num momento de grande conturbação, contenção e expetativa, em que se enfrenta uma “guerra” contra um inimigo público comum, cientificamente nomeado COVID-19, há que cumprir a quarentena imposta e remetermo-nos à intimidade dos nossos lares para evitar a propagação por contágio deste destemido “Novo Coronavírus” que avança descontrolado à escala global. Só cumprindo estas regras, evitando ao máximo o contacto com as pessoas e seguindo à risca as regras de higienização das mãos e dos espaços, mantendo também as distâncias estipuladas poderemos conter esta pandemia que a todos assusta e tolhe. Contudo, não nos deixemos vencer pelo medo e pela angústia da incerteza, relativamente ao futuro, nem nos permitamos parar de sonhar. Como tal, trago-vos boas novas no que respeita a esta crónica de “Pequenos Contos”. O que quero dizer-vos é que compilei os textos publicados nesta rubrica e criei um livro que brevemente lançarei ao público, pois já se encontra no prelo da Chiado Editora. Os Contos (de ontem e de hoje) foram todos revistos e posso dizer-vos que está um bom trabalho. Muitos dos contos são inéditos. Tinha previsto o lançamento lá para finais de junho, inícios de julho, mas com o COVID-19 a rondar por aí, só avançaremos quando tudo acalmar. Deixo-vos aqui um dos textos (republicado) porque este é um momento propício ao recolhimento e à leitura e porque “ler faz falta”. 

 A BOFETADA

Fechou os olhos e calou os pensamentos. Já não tinha paciência para discussões nem palavras suficientes para argumentar. Desta vez, estava mesmo decidida. Tentaria colocar um fim àquele quotidiano hostil e infernal que lhe consumia as forças e a jovialidade. 

Ricardo pronunciara algumas frases por entre dentes, dando a entender a sua insatisfação. Todavia, não fora completamente percetível e Amélia, de cabeça baixa, preferiu o silêncio. 

A vila parecia deserta àquela hora da madrugada. O homem olhou pela janela, uma e outra vez, e continuou com o seu interrogatório…

– Não dizes nada? – gritou, demonstrando fúria na voz – Quem cala consente!

– Não há nada a dizer. Estas conversas não têm por onde se lhe pegue. Bom seria se bebesses menos e gastasses as horas a trabalhar. Andar de bar em bar não é uma opção de vida e as tuas atitudes também não. Não vês que estás a destruir-nos?

– Eu é que estou a destruir-nos? Tu é que passas o dia fora de casa, sabe-se lá com quem e a fazer o quê, e eu é que estou a destruir-nos? 

Amélia não aguentava mais. O seu casamento dava sinais de rotura a cada dia e ela não sabia o que fazer para o segurar. Estava cansada, desgastada. Passava oito horas do seu dia fechada nos escritórios de uma oficina de automóveis e, em pós laboral, ainda dava apoio a duas senhoras idosas para ganhar mais uns trocados, de modo a conseguir pagar as contas no fim do mês e equilibrar o orçamento familiar. O marido, enfermeiro de profissão, perdera o emprego alguns meses antes por ter sido negligente ao administrar um medicamento errado a uma paciente, ato que quase lhe tirara a vida. A mulher ficara em coma durante algum tempo, sobrevivendo por milagre.

Fora uma tarde, por demais, intensa. Ao hospital, acorreram várias emergências, para além de uma situação de acidente, gravíssima, que exigiu um helicóptero do INEM. Ricardo não tivera mãos a medir. 

Depois do expediente, e completamente exausto, dirigira-se a um bar onde bebera um pouco para além da conta. O rapaz já antes vivera situações dramáticas de alcoolismo, mas fazia tempo que se tinha recuperado e nada havia a apontar-lhe. Naquele fim de tarde, encontrou um amigo e beberam juntos. Na euforia, esquecera que tinha sido destacado para fazer plantão e varar a noite no hospital, o que acabou por fazer, mas completamente embriagado. O homem pagou caro pelo seu erro. Fora despedido do emprego e expulso da ordem dos enfermeiros. Amélia tentara ajudá-lo, carregando aos ombros uma cruz que devia ser partilhada por ambos. Desculpou-o vezes sem conta, sempre que chegava a casa e o encontrava alcoolizado, compreendendo a sua raiva e frustração. Incentivara o marido a tratar-se numa clínica de desintoxicação e disponibilizara-se, até, a acompanhá-lo às reuniões dos AA (Alcoólicos Anónimos), depois de descobrir na Internet uma instituição para esse fim e próximo da sua área de residência. Desejou que se recuperasse completamente e que voltasse a ser o homem doce, carinhoso e responsável com quem um dia decidira partilhar a vida até à eternidade.

Mulher lutadora e de enorme coração, Amélia emanava doçura no olhar e um sorriso franco que cativava as pessoas, principalmente os idosos a quem dava especial atenção. Reconhecendo as suas fraquezas e os complexos de inferioridade que o acompanhavam no dia-a-dia, Ricardo sofria uma angústia permanente com medo que a esposa viesse a interessar-se por outro homem. O ciúme que sentia levavam-no a agir com alguma violência nos dias de maior embriaguez. 

Amélia saía do emprego sempre à mesma hora. Terminava o expediente pelas dezoito horas, dirigindo-se, depois, para casa das anciãs, a quem prestava apoio domiciliário, raramente ultrapassando as duas horas. Naquele dia, uma das senhoras sentiu-se mal. Na ausência dos familiares, Amélia chamara o INEM e acompanhara a idosa à urgência do hospital, ficando retida até que alguém da família se fizesse presente. 

Passava das vinte e três horas quando abriu a porta de casa e penetrou no interior do aposento. No escuro, o marido esperava a sua chegada, acoitado nas sombras da noite, como fera que aguarda o melhor momento para desferir o golpe fatal sobre a presa.

Amélia apanhou um susto de morte quando o homem se levantou e saiu do escuro, dirigindo-se para ela com uma voz rouca e sumida, questionando-a sobre o porquê da demora. Cansada e faminta, pois que nada havia comido desde a hora do almoço, a mulher explicara-lhe, uma e outra vez, porque chegara tão tardiamente, mas Ricardo berrava com ela, destratando-a, acusando-a de traição e chamando-a de prostituta, como se fosse uma qualquer. Não suportando tamanha humilhação, virou-lhe as costas e dirigiu-se à cozinha para comer alguma coisa. Ele agarrou-a pelo braço e voltou-a para si, arrancando-lhe um beijo à força. Depois, derrubou-a sobre o sofá, numa tentativa de violação. Amélia conseguiu escapar-lhe e fechou-se na cozinha, soluçando. 

– Vaca! Prostituta! És uma traidora! – vociferava o homem do outro lado da porta. 

José acordara com os arrufos do pai. O pequeno saltou da cama e correu a chorar, chamando pela mãe…

– Mamã, mamã! 

Ao ouvir os gritos da criança, Ricardo afastou-se para a sala e Amélia abriu a porta de rompante, apenas pensando no filhinho e nos traumas que aquela situação poderia vir a acarretar. Abraçou-o e tentou acalmá-lo…

– Já passou, meu amor! Já passou! – olhou o menino nos olhos e sorriu – Está tudo bem, meu doce! A mamã está aqui! Schiuuuu… 

Amélia pegou no garoto ao colo e levou-o para o quarto. Deitou-o na cama, ficando ao seu lado até que voltasse a adormecer. Nesse entretanto, pensou seriamente na sua vida. Pouco depois, voltou à cozinha para comer algo. Uma coragem fora do normal abraçava-a, não permitindo que tivesse medo. A reação do filho e o receio de que aquela situação viesse a piorar, causando-lhe ainda mais dissabores, fizeram com que tomasse uma decisão.

Ricardo estava quieto, sentado no sofá da sala, calmo e pensativo. Amélia aproximou-se e olhou-o demoradamente. Na verdade, não precisava dele para nada. Fazia já muito tempo que era ela que o sustentava e lhe pagava os vícios. Não passava de um inútil a viver às suas custas. Nunca se interessara por visitá-la no trabalho ou de averiguar onde passava o resto das horas até chegar a casa. Nunca tentara ajudar ou simplesmente minimizar-lhe o cansaço ou dar-lhe alguma força nos dias de maior desânimo. Apenas sabia inquirir, julgar e condenar. No final, não passava de um farrapo de homem acomodado ao fracasso. 

Ao dar pela presença da esposa, Ricardo continuou com as mesmas acusações, estúpidas e sem nexo. Amélia pediu-lhe que respeitasse o sono do filho e que falasse mais baixo, ao que ele aquiesceu, embora sempre com insinuações e inquirições…

– Vá, diz! Confessa d´uma vez por todas que tens um amante!

– Não há nada para dizer! Já te falei que esta conversa não nos leva a lado nenhum. Porque não arranjas um trabalho e preenches os dias a fazer algo útil na vida? Sou eu que te sustento. Ainda não percebeste?

– És uma vadia! Uma porca, uma…

Amélia chegara ao limite das forças e da paciência. Num momento de máxima saturação e impulsionada por uma força que desconhecia, enfrentou o marido e disse:

– Acabou! Não aguento mais isto. Quero o divórcio!

Do lusco-fusco, surgiu uma mão furiosa que assentou violentamente no rosto feminino, deixando-lhe a pele a latejar. O impacto da bofetada fez com que a mulher rodasse sobre si mesma e embatesse na mesa da sala de estar, derrubando os objetos de decoração que ali se encontravam. O barulho despertou a criança que apareceu no espaço sem que ambos dessem por isso. Como resposta ao ato violento do marido, Amélia ofereceu-lhe a outra face…

– Podes continuar, se isso te faz sentir um homem melhor e mais realizado. Força! 

Fora a primeira bofetada no sentido literal da palavra, mas a dor que sentia era na Alma e no coração. Ricardo ferira-a vezes sem conta com palavras duras e indecentes, mas sempre o desculpara usando como exemplo a máxima “Palavras leva-as o vento”. Todavia, desta vez o homem ousara ir mais longe e ela garantiu a si mesma que jamais permitiria que voltasse a acontecer.

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Imagem – Lugar da Fonte dos Peixes, Castro Daire

Reza a história que quem beber daquela água acaba por casar e ficar no concelho.

Este texto é um grito de liberdade para todas as pessoas que sofrem caladas o flagelo da violência doméstica.